Hoje (22 de julho) é Dia do Cantor Lírico.
O que é lírica
O étimo da palavra lírica está relacionado com lyra,
instrumento musical de corda, que os gregos usavam para acompanhar os versos
poéticos. A partir do século IV a.C., o termo lírica
passou a substituir a antiga palavra mélica (de melos, “canto”,
“melodia”) para indicar poemas pequenos por meio dos quais os
poetas exprimiam seus sentimentos.
Aristóteles distingue a poesia mélica ou lírica, que
era a palavra “cantada”, da poesia épica ou narrativa,
que era a palavra recitada”, e da poesia dramática, que era a
palavra “representada”.
O gênero lírico, portanto, em suas origens, está profundamente
ligado à música e ao canto. Mesmo mais tarde, quando a poesia
lírica deixa de ser composta para ser cantada e passa a ser escrita
para ser lida, ainda conserva traços de sonoridade através dos
elementos fônicos do poema: metros, acentos, rimas, aliterações,
onomatopéias. Sinais evidentes dessa interação podem
ser encontrados nas denominações das formas poemáticas
(soneto, canção, balada, etc.) e em algumas espécies
de arte que, ainda hoje, cultivam a simbiose música-palavra: a ópera,
o musical, a canção popular.
O consórcio com a música nos ajuda a entender a característica
mais peculiar do gênero lírico: a emocionalidade — marcante
a ponto de os termos lírico e emocional serem usados quase como sinônimos.
Lírico, na forma adjetiva, é visto por Émil Staiger (53)
como um estado de alma, uma disposição sentimental, que o eu
poemático exprime por meio de palavras fluidas, diáfanas, aparentemente
sem nexo lógico.
A poesia lírica é uma explosão de sentimentos, sensações,
emoções. Segundo Roman Jakobson (141), tendo como fator fundamental
da comunicação o emissor, o gênero lírico ativa
intensamente a função emotiva da linguagem humana.
Para expressar os conteúdos vagos de sua subjetividade, o poeta lírico
lança mão de vários recursos estilísticos próprios
da linguagem poética, especialmente a metáfora, que lhe permitem
estabelecer parentescos entre objetos que pertencem a campos semânticos
diferentes. Operando na linha da similaridade, por meio do processo psíquico
da associação, a lírica encontra relações
surpreendentes entre o sentimento do presente, as recordações
do passado e o pressentimento do futuro, entre os fenômenos da natureza
cósmica e os atributos do ser humano. Assim, por exemplo, o poeta espanhol
Góngora compara o cabelo loiro da mulher amada aos raios do sol, os
lábios vermelhos ao cravo matinal.
Evidentemente, os arroubos líricos só existem em fugazes momentos, não podendo sustentar uma longa composição literária. Daí decorre que a lírica se manifesta através de poemas curtos. Muito embora momentos líricos possam ser encontrados em gêneros literários de textos maiores, na epopéia (como o episódio de Inês de Castro em Os lusíadas, de Camões) ou no romance (a abertura de Iracema, de José de Alencar), a lírica, como gênero literário à parte, opera através de formas poemáticas reduzidas: a cantiga, o soneto, o rondó, etc. Podemos deduzir, então, que se toda lírica é sempre poesia, não importa se em verso ou em prosa, nem sempre a poesia em verso é lírica. É bom lembrar que poesia, segundo seu étimo grego, indica todo fazer artístico, qualquer criação literária. A lírica, portanto, é uma forma peculiar de poesia com as características que apontamos acima e que tem como meio de expressão as formas poemáticas que veremos adiante.
A evolução do gênero lírico
A poesia lírica é intrínseca à natureza humana.
Os antigos gregos manifestavam em versos líricos várias atividades:
o sentimento religioso (hino), a disputa esportiva (epinício), a exaltação
de um homem ilustre (encômio), a celebração das núpcias
(epitalâmio), a dor pela morte de um ente querido (treno), o gracejo
obsceno (jambo), os preceitos morais e os sentimentos da pátria e do
amor (elegia gnômica, guerreira e erótica). Infelizmente, da
maravilhosa produção lírica da Grécia antiga só
restaram fragmentos.
Os considerados mais importantes, pelo fato de que suas formas métricas
e conteúdos ideológicos tiveram imitadores ao longo da história
da lírica do Ocidente, pertencem a três grandes poetas: Safo
(625-580 a.C.), a grande poetisa do amor; Píndaro (518-438 a.C.), que
em suas famosas Odes exalta os ideais do povo grego; e Anacreonte (564-478
a.C.), o cantor das alegrias da mesa (Skólia) e da cama (Erótika).
A lírica de língua latina seguiu, de uma forma geral, os modelos
criados pelos gregos, embora o conteúdo poemático espelhe a
diferente sensibilidade do povo romano. A literatura latina apresenta quatro
poetas líricos de primeira grandeza: Catulo, Horácio, Virgílio
e Ovídio. Catulo (87-54 a.C.), considerado um dos maiores poetas líricos
de todos os tempos, deixou-nos uma coletânea de 116 poemas, intitulada
G. Valerii Catulli Liber, de onde se destacam as Nugae (Brincadeiras), poesias
leves, de assunto amoroso, que retratam a trajetória de sua paixão
infeliz pela sedutora e volúvel Lésbia. Horácio (65-8
a.C.), o poeta mais “clássico”, foi o modelo em que se
inspiraram todos os poetas europeus até a revolução estética
do romantismo. Além de poeta propriamente lírico (autor de quatro
livros de odes), ele foi o maior escritor de sátiras (dois livros),
gênero poético inventado pelos romanos, e de epístolas,
cartas em verso dirigidas a amigos, de assunto estético-filosófico.
Virgílio (70-19 a.C.), mais conhecido pelo poema épico Eneida,
foi autor de belíssimas líricas pastoris: Cármina Bucólica
(ou Éclogas), dez cantos que exaltam a vida dos pastores; as Geórgicas,
em quatro livros, poema didático que ensina o cultivo da terra, a plantação
das árvores, a criação do gado e a produção
do mel. Ovídio (43 a.C. — 18 d.C.) é o poeta elegíaco
mais prolífero da literatura latina: Amores, Ars Amatoria, Remedia
amoris, Tristia, Epistolae ex Ponto.
Na Alta Idade Média (do século V ao XI), a poesia lírica
em língua latina ficou restrita quase exclusivamente ao culto da religião
cristã: hinos, salmos, partes da liturgia da missa. Na Baixa Idade
Média (do século XI ao XV), com a afirmação das
línguas românicas, a lírica apresenta dois filões:
um, autóctone, genuinamente nacional e popular, relacionado com a vida
no campo; na língua galego-portuguesa temos o exemplo das cantigas
de amigo.
Outro filão é de origem culta, palaciana, surgido no sul da
França, na Provença: é a famosa lírica trovadoresca,
uma poesia de escola, rebuscada, que exalta a figura da mulher idealizada.
A poesia trovadoresca fez muito sucesso, tendo sido imitada por poetas galegos,
portugueses, castelhanos, italianos. Só foi destronada pela escola
do dolce stil nuovo, surgida na Toscana, no século XIV. Poetas como
Guido Guinizelli, Guido Cavalcanti, Dante Alighieri e Francesco Petrarca sentiram
a necessidade de quebrar o formalismo da escola provençal, fazendo
com que a palavra poética fosse a real expressão do sentimento.
O maior lírico da última fase da Idade Média foi Petrarca
(1304-1374), o primeiro grande poeta introspectivo de língua neolatina.
E fez escola: o petrarquismo foi a moda poética que predominou na Europa
até o advento do romantismo.
A renascença, o barroco e o arcadismo, que formam o período
clássico da cultura moderna, retomam os filões líricos
da Baixa Idade Média (trovadorismo, estilonovismo, petrarquismo, bucolismo),
acrescentando-lhes a imitação de formas e conteúdos da
poesia greco-romana. Entre os poetas líricos de maior destaque, citamos:
Lorenzo dei Medici (1449-1492), Ângelo Poliziano (1454-1494), Jacopo
Sannazzaro (1453-1530), Torquato Tasso (1554-1595), Garcilaso de la Vega (1503-1536),
Luís Vaz de Camões (1524-1580), Dom Luís de Góngora
y Argote (1561-1627), Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645), Giambattista
Marino (1589-1625), John Donne (1573-1631), Metastásio (1698-1782),
Bocage (1765-1805).
O romantismo provocou uma revolução cultural que atingiu também
o gênero lírico. Em nome da liberdade de sentir e de se expressar,
os poetas românticos deixaram de lado os cânones estéticos
do classicismo para dar larga vazão ao sentimento, cada qual poetizando
segundo os impulsos de seu subjetivismo. Os estudiosos distinguem a lírica
quietista dos lake’s poets, que se alimentavam de sonhos e ilusões
(Novalis, Young, Keats, Wordsworth, Poe, Musset, Vigny, Lamartine, Hugo),
dos poetas revolucionários, que tentaram sacudir o modelo burguês
da vida (Goethe, Blake, Byron, Baudelaire).
O maior poeta lírico do romantismo foi, a nosso ver, o italiano Giacomo
Leopardi, que com intensidade e melhor gosto estético soube expressar
o vazio existencial provocado pelo sentimento da noia, do tédio, do
desgosto face à efemeridade de qualquer tipo de prazer, personificando
a insatisfação própria da época romântica.
O simbolismo revigorou o gênero lírico, após a fase
do realismo vazio do ponto de vista propriamente poético. Aprofundando
a ética romântica, os poetas simbolistas voltaram ao espiritualismo,
tentando descobrir uma alma universal, algo misterioso que estabelecesse uma
correspondência entre os elementos do mundo humano, animal e vegetal.
Para tanto serviram-se da metáfora sinestética, que cria associações
entre sensações de campos semânticos diferentes. Os melhores
poetas simbolistas foram os franceses Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e
Valéry, este último considerado o primeiro teórico da
poesia modernista.
O modernismo e a contemporaneidade apresentam vários filões
líricos, difíceis de serem claramente delineados, pois oscilam
entre a lucidez intelectual e o impulso anárquico. Ao lado da poesia
figurativista inspirada no cubismo, dos poemas surrealistas, da escritura
automática, temos formas e conteúdos poemáticos tradicionais,
seguindo as pegadas das estéticas clássica e romântica.
Entre os mais expressivos representantes da poesia do nosso século
destaca-se Apollinaire (1870-19 18), com seus Calligrammes, que dá
o primeiro exemplo de lírica visual: as palavras adquirem sentido por
sua forma gráfica e pelo espaço que ocupam na página.
T. S. Eliot (1882-1965) é o poeta do fragmentarismo e da polifonia:
sua obra mais famosa, The Waste Land (A terra devastada), é um mosaico
cultural.
Os Cantos, de Ezra Pound (1885-1972), influenciaram muitos poetas contemporâneos
pela musicalidade (melopéia), pelo figurativismo (fanopéia)
e pelo intelectualismo (logopéia). Ungaretti (1888-1970) é o
pai da poesia hermética: inventor do “poema- relâmpago”,
utiliza poucas palavras, das quais tenta captar a essencialidade. A lírica
contemporânea da língua castelhana apresenta uma galeria de poetas
de primeira linha: García Lorca, Antonio Machado, Ramón Jiménez,
Jorge Guillén, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Vicente Aleixandre,
Rafael Alberti. No Brasil, após a renovação cultural
provocada pela Semana de Arte Moderna (1922), a poesia lírica apresenta
poetas de primeira grandeza: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius
de Moraes, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Ferreira
Gullar, Mário Faustino. Mas o maior poeta de língua portuguesa
é, sem dúvida alguma, Fernando Pessoa (1888-1935), que se tornou
imortal pela criação dos heterônimos, personalidades poéticas
distintas de si próprio, cada qual expressando uma faceta estética
e ideológica de sua poliédrica personalidade: Alberto Caeiro,
o poeta da natureza; Ricardo Reis, o poeta da herança clássico-pagã;
Álvaro de Campos, o poeta da era da máquina; Fernando Pessoa
ortônimo, o poeta do saudosismo português.
O gênero lírico, entendido como expressão do sentimento
do eu, apresenta, ao longo dos séculos, várias modalidades formais
e diferentes atitudes ideológicas.
www.ufrgs.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário